A criança gorda e sardenta atravessou correndo o gramado verdíssimo do Parque da Redenção, tentando resgatar o pequeno helicóptero de corda, que acabara de arremessar, mesmo sob as advertências da mãe:
- Eu não disse? Eu não disse? Já vai perder o brinquedo novo. Olha só, vai perder esse negócio, moleque! Recém comprei!
Desajeitado e roliço, o menino vai aos tropeços, contornando uma grande e retorcida árvore à beira do gramado, quando finalmente vê o brinquedo pousar. Com um súbito despertar para o contexto da cena, o menino, depois de um breve período de paralisia, regressa correndo com os beiços salientes de choro contido, para junto da mãe, já indignada com a ausência do brinquedo. Impaciente, ela levantou-se e seguiu em direção à árvore, com o moleque agarrado à sua perna, e de cara apavorada, deparou-se com algo mais parecendo um farrapo humano, recostado no cerne exposto da figueira, segurando pela hélice o helicóptero de plástico, com um ar curioso para o objeto.
- Ai, meu Deus! O mendigo pegou...! Vem, Aurélio, vamos embora, deixa isso aí.
A passos acelerados, e mulher se afastou arrastando o rechonchudo menino pela mão, que tropicando, sempre com cara de choro, não desgrudava os olhos do esfarrapado homem. Sua mãe ia recolhendo sem olhar para trás sua cadeira, e deixando espalhadas pelo chão todas as tranqueiras que levara, tal qual estivesse sendo perseguida pelo abominável retirante da sociedade.
O céu estava particularmente azul, as nuvens pareciam ter abandonado completamente o lindo firmamento. E o nosso observador retirante olhava para o alto, procurando entre as folhas da majestosa figueira os pequenos fragmentos azulados, num raro momento de desconcentração de sua peregrinação pela renegada existência. O rosto estava barbudo de uns cinco ou seis dias, ainda relativamente ralo de pêlos, algumas marcas encardidas na pele, e os olhos, assustadoramente azuis, pareciam refletir céu de meio de tarde. A roupa não era pouca, muitos casacos sobrepostos, para suportar os pouco mais de 8 graus que marcavam no termômetro que carregava sempre consigo, e que constantemente consultava com certa aflição.
As mãos grossas e escurecidas pareciam queimadas pelo frio, e eram já insensíveis às intempéries. As unhas ainda não estavam muito grandes, demonstrando que o asseio corporal havia sido feito ainda há pouco tempo, duas semanas, no máximo. Os cabelos desgrenhados e tendendo ao prateado, escondiam-se quase totalmente debaixo da touca de lã, onde podia-se ler em verde florescente: “Naique”. Sim, uma irrelevante paródia da famosa marca de tantas celebridades pelo ancho mundo.
A coceira na cabeça era uma constante, e coçar por sobre a touca deixava o couro cabeludo extremamente dolorido. Desta vez resolveu tirar. E coçou, prazerosamente, com um ar de quem sacia. As pernas esticadas, uma delas oculta por um fino cobertor, desde o pé. E depois de deleitar-se com o ato de expulsar a meia dúzia de piolhos que o importunavam, deteve-se a olhar o pequeno brinquedo abandonado em seu colo. Contemplava como se fosse uma peça vinda de outro plano, de um mundo estranho.
Abriu seu pequeno caderno de anotações, segurando um lápis apontado por velhas giletes, já reduzido a um pequeno toco, e lançou sobre o papel amarelado seus rabiscos. Convicto de deixar para a posteridade suas constantes observações sobre este estranho mundo de fenômenos que o cercava, praticamente indiferente a sua existência. Pelo menos cinco minutos de cada hora de sua trajetória, desde o início desta jornada, ele dedicava a anotações e rabiscos naquela caderneta. Mas o tamanho do lápis já dificultava demais, e menos de duas linhas preenchidas, a ponta se partiu, a última da vida útil daquele toco. Irritado, atirou fora o que restou do inútil lápis, e começou a percorrer com os olhos instáveis e azuis a página, desde seu início, onde reteve-se nas duas primeiras linhas, totalmente preenchidas por uma única frase, em caligrafia clássica, como se vê em documentos manuscritos da década de 30:
“Adão. Adão. Sou Adão, o primeiro homem a vagar por este chão...”.
Enfiou a touca novamente na cabeça, e foi erguendo seu corpo com bastante dificuldade. O cobertor que escondia sua perna desceu como uma cortina, desnudando uma carne vermelha e inchada sob a perna da calça, que estava cortada verticalmente, provavelmente para possibilitar vestir-se com o ferimento. O tom da vermelhidão mudava para arroxeado conforme aproximava-se o pé.
Lento e reflexivo, juntou seus apetrechos, e manquejando se foi, em direção ao espelho d’água no centro do parque.
- Muito tempo não. Definitivamente, muito tempo não. Rápido, tem que ser rápido. Eles vêm atrozes, e tal qual, velozes, montados em suas bestas-feras, de espadas em punho, e mandam-me de volta... De volta. Sempre de volta. Mas de volta pra onde? Pra que lugar? – Balbuciava Adão, gesticulando com um notório tique no ombro esquerdo, involuntariamente vindo de encontro à orelha, e rengueando com a perna direita bastante ferida, perdido em seu pensamento.
Olhou para a esquerda, para a direita, temeroso. Sentia sede, e medo de ser expulso, agredido. Aqueles cães que levavam na outra ponta de uma corrente um ser solitário e prepotente. Um deles claramente se interessou pela figura cheia de cheiros e comportamentos atávicos. Era um pequeno Chiuaua, extremamente orelhudo e curioso, totalmente perplexo e observador ao homem que mancava em direção à quina do parapeito do espelho d’água, lotado de esportistas de segundas-feiras, curtindo preciosas horas de sol do rigoroso inverno da capital gaúcha.
O homem conduzido pelos três cães ainda não notara a presença do esfarrapado ser que avançava lentamente às suas costas, na diagonal, tentando chegar ao nada asséptico lago. Mas seu cão certamente notara. E atento, parou o curso dos outros dois, e também de seu conduzido.
- Anda, Toby, vamos! Que foi? Anda! – Ao virar-se, curioso por ver o que detinha a curiosidade do cão, quando então percebeu a presença de Adão. Se é que pode-se dizer que percebeu. Nem ao menos denotou expressão, olhou através da existência de alguém ali, virou-se, como quem se ofende, puxando seu cão enforcado pela coleira, a passo irredutível e imponente.
Adão certificou-se que o cachorro não regressaria, e só então seguiu em frente, desconfiado e rápido, rumo à água que lhe mataria a sede, com uma garrafa plástica na mão.
O belo céu refletia-se nas pequenas ondulações formadas pelo vento na superfície do belo lago da praça oriental, parecendo assim estar todo recortado, como um quebra cabeças. Ao fundo, folhas acumuladas roubavam um pouco da transparência, dando um tom enegrecido, mas nada opaco, ao espelho que refletia maravilhosamente a pequena ponte que cortava o lago. No mesmo reflexo, a imagem começa a ficar mais nítida, estabilizando da última rajada de vento, e revela a imagem vermelho forte da jaqueta de Nylon do menino, no colo do pai, com os olhos estalados, observando assustado a movimentação das motocicletas e dos curtos e sonoros disparos de sirene. As imagens passam na superfície do lago como se fossem flechas, e as luzes intermitentes alaranjadas parecem fogo.
Os policiais avançavam rumo ao centro do parque, barulhentos e ostensivos, quase ameaçadores. No rádio portátil dos policiais, entre códigos e gírias próprias, quase não seria possível identificar que eram solicitados para prestar apoio em uma ocorrência nas imediações do mini-zôo, provavelmente um furto ou tentativa de roubo, comuns na região.
Adiante, outro, montado em um belo cavalo zaino, veio ao encontro dos motociclistas, dando-lhes coordenadas, e pondo-se a fechar o outro flanco para agilizar a possível captura. Seguindo para o centro do parque, todos partiram como numa ofensiva de batalha, olhos de caçadores.
***
No parapeito do espelho d’água, com muita dificuldade, Adão inclinava-se para alcançar a água, já em baixo nível. Estendia o braço, apertando o peito contra concreto, dificultando-lhe a já restrita respiração, e enfim, a água começou a escorrer para dentro da garrafa. Uma ameaça de sorriso aconteceu, e quando ia despontar-se a sensação de vitória, ao longe, bem ao longe, sons de choques metálicos das ferraduras do animal contra o concreto do chão. A sensação de desespero tomou-lhe. Abandonou a garrafa, e rapidamente levantou-se. Mirou em sua árvore e partiu o mais acelerado que pôde em sua direção. À sua frente, poucos metros, atravessou o cavalariano em cumprimento de sua missão, ao largo seguido pelos motociclistas de sirenes abertas.
Trôpego, dolorido, e mancando, Adão retirou-se rápido, decidindo abandonar o lugar agora tomado de confusão e intranqüilidade.
- Eles viriam, era certo, elas tinham de vir. Vou eu, de volta. Sempre de volta. Mas a verdade não pode deixar de ser pensada, nem de ser escrita. Preciso de um lápis.
Juntando suas coisas, meia dúzia de sacolas, alguns cobertores enrolados, foi-se embora. A jornada precisa seguir.
***
- “O Sul. Ao contrário do que pensam estes desorientados, as respostas estão no sul, e não no norte, onde sempre procuraram. Eles nunca entenderão. Eles nunca acertam, tantos milhares de anos e nunca acertam.”
- Adão. Hei, Adão!
Uma breve pausa nos seus passos, que rumavam para a rodoviária, por onde passaria tentando conseguir um lápis antes de dar seqüência em sua trajetória, Adão sentiu acelerar o coração ao escutar aquela conhecida voz a lhe chamar.
- Adão, vem cá, espera... Por favor, não me ignores – Dizia a menina, vestida como um pequena boneca de porcelana, e de traços tais quais os de uma.
domingo, 2 de setembro de 2007
Olhares Escusos - I - Céu Azul
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